quinta-feira, 12 de janeiro de 2017

Livre-Arbítrio

Um travesseiro para o livre-arbítrio descansar — só que recheado de tijolos.

 Onde os ocupantes desta última trincheira do livre-arbítrio se equivocam é 

em sua suposição de que os safanões de seus impulsos antagonísticos são 

exatamente iguais — que o indivíduo é absolutamente livre para escolher 

aquele a quem vai se submeter.Resultado de imagem para A FALÁCIA DO LIVRE ARBÍTRIO





H. L. Mencken
O livre-arbítrio, segundo consta, continua um dogma essencial à maioria
 dos cristãos. Sem ele, as crueldades de Deus esticariam a fé até um
ponto de ruptura. Mas, fora do aprisco das ovelhas, parece estar caindo
gradualmente em desuso. Os cientistas aplicaram-lhe golpes feios, e
 mesmo entre os leigos de mente mais inquisitiva o livre-arbítrio parece
estar cedendo o lugar a uma apologética espécie de determinismo — um
 determinismo, pode-se dizer, temperado pela observação deficiente. Mark
Twain, bem no fundo, era tal determinista. Em seu O que É o Homem?,
pode-se flagrá-lo dando adeus ao livre-arbítrio. A imensa maioria de nossos
 atos, diz ele, é determinada, mas ainda permanece um resíduo de livre
escolha. Com isso, ficamos livres de compulsões e temos duas ou mais
 alternativas, ficando à vontade para seguir este ou aquele caminho.
Um travesseiro para o livre-arbítrio descansar — só que recheado de
tijolos. Onde os ocupantes desta última trincheira do livre-arbítrio se
equivocam é em sua suposição de que os safanões de seus impulsos
antagonísticos são exatamente iguais — que o indivíduo é absolutamente
livre para escolher aquele a quem vai se submeter. Tal liberdade, na prática,
nunca é encontrada. Quando um indivíduo se confronta com alternativas,
não é apenas a sua vontade que escolhe entre elas, mas também o seu
ambiente, seus preconceitos hereditários, sua raça, sua cor, sua condição de
 servidão. Posso beijar uma garota e posso não beijá-la, mas seria absurdo
 de minha parte dizer que sou o único elemento ativo neste caso. O mundo
até resumiu meu desamparo num provérbio que diz que tudo depende da
hora e do lugar — e, até certo ponto, da garota.

Os exemplos podem ser multiplicados ad infinitum. Não consigo me
lembrar de ter desempenhado um único ato inteiramente voluntário. Toda
a minha vida parece ser uma longa série de acidentes inexplicáveis. É a
história das reações de minha personalidade ao meu ambiente, ou de
meu comportamento diante de estímulos externos. Não sou responsável
nem pela personalidade, nem pelo ambiente. Dizer que posso modificar
esta personalidade por um ato voluntário é tão ridículo quanto dizer que
posso modificar a curvatura do cristalino de meus olhos. Sei o que estou
falando, porque tentei modificá-la várias vezes e sempre fracassei. 
Apesar disso, ela mudou. Não sou o mesmo homem que era no século
 passado. Mas as mudanças que aconteceram para melhor não 
devem ser creditadas a mim. Todas vieram de fora — ou de profundezas 
insondáveis e incontroláveis dentro de mim.
Quanto mais se examina o assunto, mais o resíduo do livre-arbítrio
parece encolher, até que, no fim, torna-se impossível seguir-lhe a pista.
Muitos homens, naturalmente, ao se olharem no espelho, batem no peito,
consideram-se donos de seu arbítrio e pedem a Deus que os recompense
por sua virtude. Mas esses sujeitos são apenas egoístas privados de
qualquer senso crítico. Confundem os atos de Deus com seus próprios atos.
Não diferem muito da raposa que se gaba de ter posto os cães para correr.
A inutilidade do livre-arbítrio é comumente denunciada como capaz de
subverter a moral e fazer a religião de palhaça. Tais objeções tão pias
não têm um pingo de lógica, mas vamos abrir uma exceção neste caso e
dar uma olhada nelas. Elas se baseiam na capciosa hipótese de que o
determinista foge ou tenta fugir às consequências dos seus atos.
Nada poderia ser mais falso. As consequências se seguem aos fatos,
implacavelmente, sejam eles voluntários ou involuntários. Se assalto um
banco por minha livre decisão ou em resposta a alguma necessidade interior
 insondável, não importa: vou para a mesma cadeia. Na guerra, morrem tanto
oldados convocados à força quanto os voluntários.
Mesmo do ponto de vista espiritual, o determinismo não provoca tanto estrago
na teologia. Não é mais difícil acreditar que um homem será punido por seus
atos involuntários do que acreditar que ele será punido por seus atos
voluntários, pois mesmo a suposição de que ele é completamente livre não anula
o fato de que Deus o fez como ele é — e que Deus poderia ter feito dele um
santo, se quisesse. Negar isto é tratar com desprezo o Onipotente — um crime
do qual me eximo. Mas agora começo a pensar que chapinhei longe demais na
 água benta das ciências sagradas, e que é melhor dar o fora antes que me
esfolem. Esta prudente retirada é puramente determinística. Não a atribuo à
 minha própria sagacidade; atribuo-a inteiramente àquela singular gentileza
que o destino sempre me reserva. Se eu fosse livre, provavelmente continuaria
a escrever — e depois me arrependeria.

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