quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

A velhice maltratada, roubada, abandonada e vilipendiada


Fatima Oliveira *


Alguém tem de dar um basta em tamanha desgraça


Há anos tenho a percepção de que os pronto-socorros se esvaziam no Natal, período em que, desde a antevéspera, há uma pressão familiar exagerada para que idosos e acamados em geral recebam alta. Simples. Natal é festa em casa, e nenhum familiar quer ficar em hospital com doente. Daí a insistência pela alta. Algo bem diferente do restante do ano.

Via de regra, a tendência é se insurgir contra a alta hospitalar, exigindo que seu familiar idoso ou fisicamente dependente permaneça no hospital ad aeternum, sob diferentes argumentos, mas, na base, em geral, está o desejo de não levá-lo para casa.

O "Fantástico" de domingo último, dia 13, exibiu diversas modalidades de violência contra pessoas idosas envolvendo cuidadores remunerados e familiares. A matéria afirmou que as "denúncias de crimes contra idosos crescem quase 200% em um ano"; que elas triplicaram entre 2011 e 2012; e que os "crimes mais denunciados são negligência e violência psicológica. Depois, vêm abuso financeiro e econômico, violência física e abandono".

No Ano Novo, uma festa de rua, dá-se o inverso. A partir do dia 30, começa a romaria do retorno de idosos e acamados para o pronto-socorro, exigindo que fiquem internados. Até uma troca de sonda nasoentérica é motivo para uma esculhambação para que aquele doente fique no hospital. Um disparate total. Dá náuseas.

Há famílias, e são várias, que dão até endereço errado! Pelo rodízio familiar, era a vez de uma fulana cuidar do pai por uma semana. Simples. Ela chamou o Samu, sob o argumento de crises convulsivas (descobrimos que era mentira!), e levou o velho, que não tinha nada, apenas era acamado há anos. Ao fazer a ficha de atendimento, ela deu endereço e telefone de outra irmã e sumiu! A cuidadora viajou para o réveillon na praia! Foi um bafafá, porque a filha cujo endereço estava na ficha de atendimento se recusava a buscar o pai no hospital e só compareceu sob ameaça de um BO por abandono de incapaz! Chegou, cinco horas depois, esbravejando e ameaçou todo mundo de negligência, omissão de socorro...

Violações que as famílias
perpetram contra seus 
familiares demonstram
a banalização e a
naturalização da
violência a que eles
estão submetidos

Há casos em que a pessoa doente está de alta, sobretudo pós Acidente Vascular Cerebral (AVC), com sequelas incapacitantes para a vida autônoma, em que a família fica enrolando por semanas, alegando que precisa se preparar para recebê-la em casa... Se são muitos filhos, o hospital vira um ringue... Cada um tirando o corpo fora mais que o outro... Mas todos querem ser o "procurador" junto do INSS.

Houve um caso em que cada um dos quatro filhos solicitou declaração de que a mãe, com sequelas graves pós-AVC, estava impossibilitada de receber a pensão pessoalmente. Como a declaração havia sido dada à filha que a internou e que, perante o hospital, era a responsável por ela, inclusive em dois atendimentos anteriores, o mundo quase veio abaixo. Disse-lhes que fossem resolver o caso deles na polícia.

Todavia, o que mais dá a dimensão de completo abandono é de idosos, acamados e crianças com miíase (mye=moscas; ase=doença), o que se chama na roça de "bicheira", coisa não rara em Belo Horizonte. Fico possessa, pois acho que gente não é para ser comida viva por bichos! Puxando pela memória, expus, sucintamente, alguns casos, apenas para demonstrar diferentes graus de violação dos direitos humanos que as famílias perpetram contra seus familiares com dependência física de cuidados, com o intuito de demonstrar a banalização e a naturalização da violência a que estão submetidos no cotidiano. Alguém tem de dar um basta em tamanha desgraça.



* Médica e escritora. É do Conselho Diretor da Comissão de Cidadania e Reprodução e do Conselho da Rede de Saúde das Mulheres Latino-americanas e do Caribe.Indicada ao Prêmio Nobel da paz 2005.

http://www.vermelho.org.br/coluna.php?id_coluna_texto=5067&id_coluna=20

2 comentários:

  1. Minha cara colega, essa triste situação de negligência e abandono não é apenas vivida pelos idosos. Nossas crianças portadoras de transtornos mentais padecem do mesmo mal, em grande parte. Existem famílias onde até as tias, padrastos e madrastas violentas disputam a guarda da criança ou adolescente junto ao INSS para ter a posse do dinheiro, não para cuidarem da criança. Por outro lado, tentam jogar seus filhos nos CAPS, como se esses fôssem albergues ou internatos. Nossa luta para fazer a família assumir seu papel no tratamento da criança e para que essa não seja vilipendiada tem sido um trabalho de Hércules ou de Dom Quixote, por que quase sempre , a luta por uma vida mais digna e humanizada para nossos infantes e adolescentes fica, apenas, no campo dos sonhos.
    Precisamos encontrar estratégias para defender essas populações vulneráveis e indefesas e resgatar o respeito à condição humana, cada dia mais "coisificada", mais mercantilizada, geradora de algum "benefício" para um outro, um segmento ou uma classe social.
    Excelente artigo, na medida que pode contribuir para uma reflexão e análise do nosso papel como indivíduo, cidadão, gestor e sujeito, dentro de um contexto social "desumanizado",insensível e indiferente ao sofrimento do outro ,de um povo ou de uma classe dominada.

    ResponderExcluir
  2. Como conviver com o idoso

    Ivone Boechat (autora)

    1- Nunca pergunte a um idoso: qual é o segredo de viver tanto assim? Porque a pessoa não vai lhe convencer ou vai dizer que não sabe a resposta. Quem vai adivinhar como se vive anos e anos, com tanta virose, corrupção, mentira, tapeação, bala perdida, exploração... ruindade!
    2- Nunca telefone ou visite um idoso entre 12:00h e 16:00h. TODO idoso gosta de descansar nesse período sagrado.
    3- Jamais conte um problema ao idoso. Ele vai poder ajudar? Também não seja o problema do idoso: é covardia. Ele não vai ter como se defender.
    4- Nunca interfira na decisão do idoso: se ele decidiu ser enterrado ou cremado. Não fique reclamando do preço da cremação, do túmulo..Nem fique agourando e perguntando o que a família deve escrever por cima do túmulo.
    5- Nunca diga ao idoso: essa história você já me contou dez vezes. Diga a ele que a história é interessante e o ajude a resumi-la. Ele vai entender que a história é conhecida!
    6- Não estimule o idoso a se lembrar de um fato que lhe cause sofrimento. Desvie sempre a tristeza para o lado bom de tudo.
    7- Não explore a disponibilidade do idoso, lembre-se que ele já trabalhou muito e hoje não tem mais resistência, saúde e vigor para tomar conta de problemas e cachorros... dos outros. Deixe em paz o cartão bancário com o pagamento da minguadíssima aposentadoria. Vai à luta!
    8- Mude o canal da TV quando o assunto é desgraça!
    9- Ao visitar o idoso, leve algo que lhe faça bem à saúde: boa conversa, estímulos, boas notícias... palavras cruzadas, linha para crochê... uma fruta que ele possa consumir... um livro. Nas festas de aniversário e Natal, seja criativo! Chega de tanto pijama e chinelo.
    10- Lembre-se: a pessoa idosa tem todo direito à felicidade e não vai ser você que vai atormentar os derradeiros dias da vida de ninguém. Exercite a gratidão, o perdão, a solidariedade e chega de despejar lixos de traumas, tristezas antigas e carências na caçamba que a vida cismou de colocar na porta de quem lutou tanto para resistir às intempéries.

    ResponderExcluir